A morte dos Filósofos de Espírito

«Pensar no tempo – em tudo o que está para trás.

 Pensar no dia de hoje a nas idades que hão-de continuar doravante.

Já imaginaste que tu, tu mesmo, não hás de continuar?

Já tiveste medo destes escaravelhos da terra?

 Já receaste que o futuro nada signifique para ti?

 O dia de hoje nada é? o passado sem começo nada é?

Se o futuro nada for, eles certamente nada serão.»

– Walt Whitman, 2010, p. 402, em Folhas de Erva.

A propósito do panorama mundial no qual vivemos, a frágil situação política da Europa e de uma América com um possível Trump como presidente, faz-nos pensar que alguma coisa não está certa e recear o futuro que se avizinha. Um futuro desprovido de cultura e de liberdade de expressão, um futuro vazio em valores e sem restos de dignidade humana. Um futuro em que a verdade vai ser guardada a sete-chaves e dificilmente de lá voltará a sair.

Nunca o livro “Nobreza de espírito: um ideal esquecido” (2011) de Rob Riemen, fundador do Nexus Institute e autor de “O Eterno Retorno do Fascismo” (2012) e “O Regresso da Princesa Europa” (2016), e com prefácio de George Steiner (Autor de A ideia de Europa), fez tanto sentido. O prefácio é uma chamada de atenção para a «encarnação da civilização europeia» como uma civilização ameaçada devido à perda dos valores humanistas clássicos, que privilegiavam a vida do espírito e a importância da proteção da linguagem – «O nosso mundo é o de Galileu e de Darwin. A esfera da palavra (logos), à qual estes textos se dirigem em inquieta glorificação está a retrair-se.» (Steiner, p.13).

O livro conta com uma Introdução intitulada “Jantar no River Café”, na qual o autor partilha a ideia de que «não podemos planear os mais importantes acontecimentos da nossa vida – acontecem-nos. O dia em que uma amizade ou um grande amor nos visitam é imprevisto; o acontecimento único que muda a nossa vida para sempre é imprevisto» (p.15). É por meio desta imprevisibilidade que Riemen partilha, quase de forma documental, a sua admiração por Thomas Mann e os encontros particularmente interessantes com a filha do autor de “A Montanha Mágica”, Elizabeth Mann Borgese e o seu amigo pianista, livreiro e compositor Joseph Goodman – apaixonado pela obra de Walt Whitman.

Este encontro foi assinalado por um daqueles acontecimentos imprevistos únicos, que marcam para sempre qualquer vida: o atentado do 11 de Setembro de 2001. A este primeiro encontro, uns dias depois do atentado, seguiram-se novos encontros e novas conversas que percorreram temas tão singulares do passado e do futuro como a visão da estátua da liberdade como a «Mulher Poderosa» que ali continuava de cabeça erguida e cuja tocha era o relâmpago aprisionado, o apogeu do fascismo com afigura de Hitler, a crise da dignidade humana e o poder da obra de Mann e de Whitman que ilustram a vida como: «uma demanda da verdade, do amor, da beleza, do bem e da liberdade; a vida como a arte de nos tornarmos humanos através do culto da alma humana» (p.29). E termina com a composição de uma sinfonia sobre a “Nobreza de Espírito” que se perde com a morte do seu compositor (Goodman).

Esta Nobreza de Espírito é aqui vista não como «uma forma de nobreza que se baseia apenas no acaso e, como tal, sem valor» (p.36), mas sim como nobilitas literaria, isto é, como a quinta essência de cada civil, a essência máxima de uma civilização ameaçada e o «único corretivo para a história humana» (p.34).

A Nobreza de Espírito como ideal de conhecimento, suficientemente abrangente que nos permite trabalhar a nossa mente (o maior dom da humanidade) e viver para a verdade e a liberdade, liberto do poder da religião, do dinheiro e do fanatismo politico que subtilmente oprimem século após século a emergência do pensamento independente – «Liberdade de pensamento, liberdade de opinião e tolerância devem ser o objetivo das políticas» (p.40).

«A essência da liberdade, não é mais do que a própria dignidade. Só obedecem ao apelo para serem humanos, aqueles que não se deixam possuir pelo desejo, riqueza, poder ou medo, mas que em vez disso conseguem tornar seu o que é duradoura e verdadeiramente bom e deixam que a liberdade e a verdade os conduzam – somente estes sabem o verdadeiro significado da liberdade» (p.41).

A noção com que se termina a primeira parte da obra vai ao encontro da ideia de que a democracia é a forma de governo que melhor salvaguarda a liberdade. No entanto, a questão que se impõe é: «Qual é o futuro da democracia, da liberdade política se o povo já não sabe qual é a essência da sua liberdade?» (p.40).

A segunda e a terceira parte do livro divide-se entre “A Demanda de Thomas Mann” e “Conversas Extemporâneas sobre Questões Oportunas” e termina com “Coragem”. Estas três partes revisitam as ideias e o trabalho desenvolvido por Thomas Mann, mentor de Riemen, e tornam-se numa autêntica fusão e colagem de ideias, textos, previsões futuras, valores e ideais sobre a humanidade e o seu espírito. Aqui frase após frase mistura-se a realidade e a ficção dos verdadeiros autores e filósofos do espírito como: Sócrates, Platão, Nietsche, Camus Dotoievsky, Baudelaire, Proust, Goethe, Satre e Whitman, terminando em “Coragem” com uma homenagem a Leone Ginzburg.

Esta homenagem é feita através de um diálogo entre Ginzburg e um ex-colega da universidade, convertido ao fascismo. Aqui encontra-se uma visão realista da atualidade mundial transmitida pelos media, que optam por se subjugar ao medo em defesa do seu bem-estar social e financeiro. Afirmando que nada é mais importante do que saber adaptar-se às circunstâncias – incluindo o poder que nos regula independentemente da direção – deixando de parte a liberdade individual, a ética, a moral e a defesa dos valores máximos da humanidade.

Ao longo destes três capítulos é possível observar que a religião é afastada pela racionalidade total e a moralidade por uma doutrina de virtude, apesar de a verdadeira moralidade admitir a duvida e até mesmo o pecado. A consciência de um reino luciferino em que a humanidade pode persistir e um conjunto de conhecimento e experiências que se assumem superiores ao novo dogma da «razão, virtude e Felicidade» (p.48).

A dúvida é desnecessária e, hoje, mesmo indesejada. As massas não estão interessadas, porque as suas cabeças não querem questões e os políticos «não estão interessados, porque o seu poder depende da estupidez das massas» (p.149).  No entanto, para Mann, ninguém pode ser dono da verdade e, além disso, «a humanidade é mais bem servida pela demanda da verdade do que pela sua posse absoluta» (p.49).

O que ardia em fogo lento inflama-se na revolução que tem lugar no século XX: a eternidade é definitivamente destronada. «A modernidade é transitória, efémera, contingente», segundo Baudelaire. Inaugura-se uma nova noção do tempo impulsionada pela tecnologia e atribui-se superioridade a tudo o que é novo, veloz e mostra progresso. Tudo se limita aos serviços e bens de consumo e oferecem-nos a liberdade de sermos felizes com as nossas máquinas. É esta a nova realidade experienciada no mundo ocidental. As tradições e os valores caem num abismo, no qual o significado já não existe porque não pode ser conhecido, com sorte, pode ser considerado por um segundo e limitado pelo critério de cada um.

O niilismo impera nesta «era moderna» e a verdade, que nos liberta por ter poder sobre nós, deixa de ser medida e valor para ser reduzida a uma entidade empírica ou matemática que não será mais o ideal ao qual a realidade deve aspirar.

Em Reflexões de um Homem Apolítico (Thomas Mann), o conceito de humanismo surge em oposição ao conceito de cultura e é a expressão do retrato da humanidade superficial, otimista e democrática. É a favor do futuro e não do passado. Quem é a favor da cultura deve concordar com a paz e considerar a existência de uma república democrática.  Para unir a razão e o misticismo é preciso um terceiro elemento: o humanismo.

A cultura pode degenerar em barbárie quando os desenvolvimentos sociopolíticos são ignorados. É a união entre o bem e o mal da humanidade e há que ter em conta que a vida carece de um corretivo moral, que é oferecido pelo espírito humano. Sem essa componente ética e moral, a quinta essência é ignorada e a civilização morrerá. O povo quer mergulhar numa euforia coletiva, liberto de responsabilidade individual.

O pensamento, os mitos, as experiências e as emoções só existem graças à linguagem e são moldadas por esta. É a linguagem que nos permite nomear e conhecer o mundo. A linguagem dá-nos um mundo que chega além da realidade do momento, a um passado e a um futuro. É através da linguagem que a eternidade tem um espaço e que os mortos continuam a falar. Não tolera mentiras e nos locais onde  o significado das palavras é destruído pelo fogo, a verdade e a humanidade ardem juntamente com as palavras. Transformam-se em pó e torna-se inúteis para o mundo.

Segundo Sócrates, que optou pela morte, em vez de parar de questionar o mundo: «A não ser que os filósofos se tornem réis nos nossos Estados ou que aqueles a que agora chamamos réis e governantes se habituem a seguir filosofia séria e adequadamente, e que haja uma conjugação destas duas coisas, poder político e inteligência filosófica, não pode haver fim para os problemas». A verdadeira democracia não se consegue realizar sem uma tendência aristocrática – tem de ter uma nobreza, embora não de sangue, mas de espírito.

«As mentes politizadas não vêem indivíduos concretos que estão vivos, que amam e que são amados. Só vêem abstrações: capitalismo, comunismo, globalização» (p.115). O anti-americanismo não é mais do que uma voz desmedida sobre o poder do capitalismo, do consumo de massas, liberdade de comercio e superficialidade. Nem os intelectuais estão a salvo de se tornarem traidores quando o seu fanatismo e ideologias se sobrepõem à visão da realidade não metamorfoseada e cortada em pedaços. A violência será a réplica vencedora da verdade. E ao desvalorizar a verdade, estamos a desvalorizar a cultura, o individuo e a comunidade.

Estamos a um passo de regredir e é com a ironia desta afirmação que urge a necessidade de voltar a apostar na verdade e na liberdade intelectual e filosófica como salvação da humanidade. Só pela ‘educação liberal’ é possível elevar a nossa básica humanidade. E impedir que esta se deixe corromper pela sedução do poder, pela cultura vazia das massas e pela má fé.

«A cultura não pode existir onde não há liberdade, mas onde a cultura é banida, a liberdade é desprovida de significado, e só resta o arbitrário e o trivial» (p.143). O homem tendencialmente nasce bárbaro e é a cultura que o molda, modelando as qualidades espirituais intangíveis e coligidas na herança cultural. A dignidade humana nunca terá a mínima hipótese sem direitos e sem liberdades democráticas constitucionalmente enraizadas e protegidas.

Para que exista civilização e desenvolvimento é fundamental que exista prosperidade e segurança sem cair no erro de assumir a prosperidade material como valor absoluto. Tem que haver espaço para a liberdade politica, intelectual, artística e religiosa, caso contrário, inauguraremos uma era de terrorismo sem precedentes, na qual a civilização desaparecerá e a humanidade será vitima da sua própria corrupção e decadência.

Sem nobreza de espírito, a cultura desvanece-se. Numa sociedade em que a ignorância é a única sabedoria de que se orgulharam, os valores do humanismo já se perderam, o Homem está prestes a regressar às fontes primárias do seu ser e a necessidade de revitalizar a cultura, a coragem, a moderação, a sabedoria, a justiça e a busca incessante pela verdade é urgente.

Tal como afirma Whitman no poema que escolhi para dar inicio a esta reflexão: Se o futuro nada for, eles certamente nada serão. Só com Homens livres podemos habitar uma Cidade livre. E quando não se acredita em nada, torna-se ainda mais fácil sermos manipulados a acreditar em qualquer coisa.

 

 

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